Intervenção apresentada no painel Libertarismo na Imprensa e nos Media nos Encontros do Nadadouro de 2025, a 22 e 23 de Março.
Do tipógrafo ao jornalista
A conexão entre os anarquistas e a tipografia encontra-se robustamente documentada. Ao longo do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, muitos anarquistas eram tipógrafos, aproveitando as suas habilidades para produzir literatura e jornais dedicados à causa. A tipografia, enquanto profissão, oferecia uma das raras oportunidades de autonomia e acesso directo a materiais impressos, essenciais para a propagação de ideias subversivas.
Os tipógrafos não só dominavam a leitura e a escrita mas também controlavam os meios de produção literária, o que lhes permitia imprimir os seus próprios jornais, panfletos e livros. Esta autonomia era vital para o movimento anarquista, pois permitia a evasão à censura editorial e a disseminação das suas ideias de forma independente. Publicações como o Freedom na Inglaterra, a Mother Earth nos Estados Unidos e o Le Révolté na França, surgiram exactamente deste contexto, impulsionadas por anarquistas que usavam as suas competências tipográficas para fortalecer o movimento.
Em Portugal o jornal A Batalha era o único a sair quando havia greve dos tipógrafos, pois era também o jornal dos tipógrafos.
A ideia de que os anarquistas muitas vezes aprendiam a ler através do seu envolvimento com a tipografia e a imprensa não é um mito, foi uma realidade que desempenhou um papel crucial na educação e na disseminação do anarquismo. Esta intersecção destaca o poder dos meios de produção de informação como ferramenta essencial para movimentos sociais.
Do Séc. XIX ao Séc. XXI
No século XXI, apesar da diversidade aparente nos meios de comunicação, os anarquistas continuam a enfrentar uma exclusão absoluta dos jornais, revistas e canais de televisão mainstream. Os comunistas e os trotskistas queixam-se do mesmo, e com alguma razão, mas, embora em menor número, ainda vemos trotskistas e comunistas a serem chamados a dar a sua opinião sobre política nacional e internacional ou economia nas rádios, televisões e jornais. Alguém se lembra de alguma vez, como contraponto, esses mesmos órgãos de comunicação social deixarem ouvir a opinião de um anarquista? Conhecem algum jornal que tenha um anarquista na sua secção de opinião?
Esta marginalização obriga-nos a recorrer à criação dos nossos próprios canais de informação. A internet e as tecnologias digitais oferecem novas plataformas para a disseminação de ideias anarquistas, mas mesmo assim, a presença anarquista continua sub-representada nos debates públicos promovidos pelos media tradicionais.
Esta necessidade de criar espaços autónomos de comunicação reflecte uma continuidade das práticas históricas do anarquismo. Blogues, podcasts e redes sociais tornaram-se os equivalentes modernos dos jornais e panfletos do passado, permitindo uma disseminação mais rápida e ampla das ideias anarquistas. Contudo, estes meios independentes enfrentam cada vez mais desafios, como a censura digital e a dificuldade de alcançar um público mais amplo face à saturação de conteúdos na internet e ao facto das plataformas agora exigirem que se lhes pague para mostrarem os nossos conteúdos seja em pesquisas no Google ou inclusivamente a quem nos segue, seja no Twitter, no Facebook ou no Instagram, quem segue páginas anarquistas raramente é notificado quando estas são actualizadas, estima-se que só 3% dos seguidores são notificados a não ser que paguemos para que os seguidores recebam essas actualizações no seu feed.
Ou vocês acham que tendo milhares de seguidores, mas só a mesma meia dúzia de pessoas comentar as vossas publicações, é mera coincidência? São só aqueles 3% que ainda vos conseguem ler.
Não lhe chamam censura porque, se pudermos pagar, as pessoas conseguem ler-nos. Não estamos proibidos, mas a nossa voz só é ouvida se pagarmos. Assim conseguem censurar vozes dissidentes e fingir que ainda vivemos em democracia, mas não se iludam, o sistema actual já não é uma democracia, nunca foi, mas já nem precisa de disfarçar que não o é. Se só tem liberdade quem tem dinheiro, isso não é uma democracia.
Burocracia, taxas e taxinhas
Outra dificuldade que nos afecta são as barreiras constantes à criação de novas revistas e jornais, antes o jornalismo era uma profissão nobre que podia ser e era muitas vezes desempenhada por pessoas com um sentido de dever, o maior exemplo disso são os jornais locais. Pouco a pouco tornou-se obrigatória a necessidade de uma Carteira Profissional, de um registo da entidade que edita o jornal e o pagamento de uma taxa, do registo do jornal, revista ou até blogue (não sei se lembram de quando a ERC tentou obrigar as fanzines, os blogues e sites a registarem-se, mas eu já sou velho e lembro-me) e, adivinharam, mais uma taxa para pagar.
E para se ter uma publicação, a mesma tem de ter um jornalista responsável e actualmente só pode aceder à Carteira de Jornalista quem tiver um curso superior, que nem tem de ser de jornalismo. Assim criaram uma barreira de classe no jornalismo, onde só lhe acede quem tem dinheiro para tirar um curso superior e estiver devidamente doutrinado e formatado nas universidades do sistema. Uma vez mais, a liberdade de imprensa, tal como o alcance nas redes sociais, é agora também uma liberdade exclusiva de quem tem dinheiro.
Parafraseando Chomsky, não estou a dizer que os jornalistas, comentadores e cronistas propagam ideias que não são as suas, estou a dizer que se pensassem de outra maneira não teriam qualquer espaço onde falar, não lhes teriam dado esse emprego, não os teriam chamado para comentar nem nas rádios, nem nas televisões, nem nos jornais.
Subvenções populares (crowdfundings)
A solução encontrada por alguns exemplos de comunicação social alternativa que preferem não ser financiados pelas fundações Ford, Koch ou Soros, fundações de soft power americano que têm financiado alguns órgãos sociais e associações da dita “extrema-esquerda”, tem sido o crowdfunding ou, como eu gosto de lhes chamar: subvenções populares.
Gostava aqui de elogiar dois exemplos que, não sendo propriamente publicações anarquistas, são publicações onde colaboram anarquistas: refiro-me ao jornal Lisboa Para Pessoas e à revista Shifter, que têm conseguido manter-se à tona. Infelizmente numa economia como a portuguesa e com uma mentalidade onde o apoio mútuo não vigora, e aqui refiro-me ao militante de esquerda típico de fora do PCP – que é o seu próprio mundo – vimos projectos de valor como o jornal digital “Setenta e Quatro” desaparecerem por não conseguirem angariar os fundos necessários.
Ou seja, as subvenções populares podem resultar, mas é extremamente difícil, principalmente em países tão pequenos e com tão pouca massa activista como Portugal.
Novos formatos
A maior parte dos jornais e revistas têm optado por um lugar de nicho, restringindo a sua circulação a assinantes e apoiantes. Fora da lógica do mainstream só me ocorre terminar com um exemplo, em 2014 vários jornalistas decidiram demitir-se do “Le Monde” e fundar um semanário, o “Le 1”.
Com um capital de 10.000€, um valor impossível para qualquer publicação de esquerda independente em Portugal, conseguiram e conseguem editar um semanário temático, com vários suplementos, e com uma tiragem superior a 30.000 exemplares. Ou seja, com presença em banca na França, Canadá e até em Portugal.
Tal só foi possível recorrendo a um formato que pessoas, como eu, que tenham produzido fanzines na sua juventude conhecessem bem: o formato origami. Ou seja, o jornal é impresso como se fosse um cartaz A1, daqueles que vemos nas ruas nos anúncios de cinema e perfumes nas paragens de autocarro, e depois é dobrado até ao formato A4.
Pelo preço de se imprimirem dois cartazes, o papel é impresso nos dois lados, consegue ter-se uma tiragem digna de um jornal mainstream por uma fracção bem mais pequena do custo. Em Portugal sempre tivemos esperança de que alguém quisesse fazer algo semelhante e fazer regressar um jornal anarquista às massas, em vez dos nichos onde nos encontramos actualmente a debater quem é mesmo anarquista, se os anarquistas podem militar em partidos ou, sequer, se devem votar nas eleições. Assim, falaríamos, uma vez mais, para as massas.
Flávio Gonçalves
Fundador da revista Libertária, activista sindical, ex-autarca, editor e tradutor que se assume como livre de tribo, identidade, loja e seita.
Muito bom, caro Flávio. Obrigado por teres vindo a este Encontros.
Neste mundo meticulosamente hierarquizado e em perpétua desordem, precisamos de anarqusmo que traga a ordem dissipando as hierarquias.
Como jornalista e de esquerda, gostei muito desta publicação! Mais anarquismo na imprensa e nos media precisa-se!