A abstenção eleitoral é um princípio fundamental do anarquismo. Continuará isto a ser uma regra absoluta?
Diz-se que Emma Goldman afirmava que "se o voto pudesse mudar alguma coisa, seria ilegalizado." O desprezo pelo sufrágio permeia o anarquismo, ao ponto de os libertários que defendem a participação em eleições estatais constituírem uma minoria e estarem quase sempre numa posição defensiva.
Este ensaio inscreve a luta pelo voto das mulheres no contexto das aspirações libertárias a uma transformação social radical, e reconsidera também o repúdio libertário pelo voto à luz do presente. Um século após "A Grande Reforma", proponho que reformulemos a lógica de Goldman: talvez os detentores do poder se esforcem tanto por tornar o voto ilegal porque este pode, de facto, mudar alguma coisa.
Feminismo anarquista durante o movimento sufragista
Embora Emma Goldman e as suas companheiras tenham rejeitado o sufrágio feminino em nome do anarquismo revolucionário, também souberam pôr de lado as divergências em torno do voto para formar coligações noutras lutas. As mulheres anarquistas colaboraram com reformistas sufragistas em campanhas concretas, como a luta pelo controlo da natalidade, a organização contra a Primeira Guerra Mundial, e o combate pela libertação de prisioneiros políticos.
O sufrágio foi um movimento vasto e diverso — não se tratava de um direito adquirido pelas mulheres. A opção com que as anarquistas lidavam então — e a que responderam unanimemente de forma negativa — era se deveriam lutar pela conquista do direito de voto, e não apenas se deviam ou não votar. A anarquista inglesa Rose Witcop expressou bem essa posição comum: escreveu no Voice of Labour que admirava a coragem das sufragistas, mas que recusava acreditar que a reforma parlamentar pudesse beneficiar a classe trabalhadora. As mulheres anarquistas faziam questão de se distinguirem dos opositores patriarcais do sufrágio feminino. Goldman via-se como uma feminista melhor — e mais radical — do que as próprias sufragistas. Numa carta da prisão à sua sobrinha Stella Ballantine, datada de 3 de Abril de 1919, Goldman caracterizou o seu feminismo como “uma perspectiva mais ampla e profunda” do que a das sufragistas, que se fixavam no voto e negligenciavam a questão social.
As anarquistas também ridicularizavam prontamente a ideia de que as mulheres iriam purificar o governo e corrigir os seus excessos — tarefa que, segundo ironizava Goldman, exigiria “poderes sobrenaturais”. De modo geral, as mulheres anarquistas indignavam-se com a noção de que a castidade e a virtude moral seriam atributos femininos, encarando a “pureza” apenas como o reverso da “impureza”, e as “más mulheres” como o duplo patriarcal necessário das “boas mulheres”.
A anarquista britânica Dora Marsden troçava das mulheres “puras” por estarem mais fascinadas com o vício do que os próprios pecadores: “os viciosos divertem-se a imaginar e depois a ‘tocar-se’; as ‘puras’ prolongam a excitação ao imaginar para depois se absterem. No fundo, não há grande diferença entre umas e outras.”
Com base na análise do anarquista britânico Paddy Vipond sobre as objecções anarquistas ao voto, podemos identificar quatro argumentos principais — e muitas vezes sobrepostos — que moldaram a visão das mulheres anarquistas sobre o sufrágio:
O ponto essencial é que o sufrágio não funciona: não conduzirá a uma sociedade livre e justa. Citando Thoreau, Goldman afirmava: "até mesmo votar pelo que está certo é não fazer nada para que isso aconteça." A democracia governamental não passa de uma fachada para o verdadeiro poder da classe proprietária. A única alavanca real de que os trabalhadores dispõem é o seu poder laboral.
A eficácia limitada do sufrágio torna-se ainda mais nefasta devido à duplicidade do processo eleitoral. O jogo está viciado. A anarquista de Chicago, Lucy Parsons, insiste que os nossos representantes eleitos, ancorados nos interesses dos ricos, são na realidade "corruptos a fazer os seus truques." As pessoas íntegras até poderão resistir à corrupção, argumentava Goldman, mas continuarão "impotentes para exercer até a mais leve influência em favor dos trabalhadores.”
O terceiro ponto diz respeito à legitimidade da representação. Mesmo que o processo eleitoral fosse escrupulosamente honesto, os anarquistas continuam convictos de que o governo representativo é, em si, anti-democrático. Só a democracia directa é uma verdadeira democracia: os trabalhadores devem controlar os seus locais de trabalho; os alunos e os professores devem controlar as suas escolas; as crianças e os adultos devem ter igual poder e estatuto nas famílias. O sufrágio cumpre um papel de legitimação a um nível profundamente pessoal: o acto de votar legitima o sistema de governo representativo ao habituar-nos ao Estado. Mesmo que entremos na cabine de voto cépticos quanto ao sistema, o acto de votar, o processo de conhecer os candidatos e as suas temáticas, acompanhar os resultados, discuti-los com outros — tudo isso não é isento de consequências. Prepara-nos para aceitar tacitamente as estruturas da autoridade em vez de as contestar.
A quarta objecção ao sufrágio, segundo a perspectiva anarquista, prende-se com o custo necessário, em tempo e atenção, para nos informarmos sobre os assuntos e exercermos o nosso voto. Os anarquistas têm insistido que o nosso tempo deve ser melhor empregue em acções com um maior potencial de transformar o mundo. As lutas sufragistas desviam uma preciosa energia política para campanhas que estão condenadas ao fracasso. Esta era uma das maiores preocupações das mulheres anarquistas há cem anos, pois quase todas elas eram activistas a tempo inteiro no seio do movimento anarquista. O movimento sufragista era um concorrente que disputava os escassos recursos humanos do activismo.
Repensar o voto hoje em dia
Onde é que isso nos deixa, actualmente? Levando a sério a convicção anarquista de que o voto nas democracias representativas é um sistema viciado, que protege o capitalismo, nos rouba o desejo de uma verdadeira autogestão e pode desviar-nos de lutas mais importantes — o que resta dizer sobre o anarquismo e o voto?
Dado que os anarquistas do século passado reagiam ao movimento sufragista, e não propriamente a uma instituição estatal já consolidada, as questões contemporâneas sobre se os anarquistas devem votar situam-se num contexto diferente das antigas interrogações sobre se as mulheres anarquistas deveriam ou não lutar pelo direito de voto. Hoje, as autoridades envidam frequentemente grandes esforços para desencorajar o voto — sobretudo entre os jovens, entre as pessoas não brancas, entre os antigos prisioneiros —, pelo que aos anarquistas se impõe a pergunta: porquê? Talvez este alarmismo por parte dos poderosos devesse ser o nosso incentivo.
Os poucos anarquistas que defenderam o voto fizeram-no muitas vezes com base na ideia de que este pode representar um pequeno passo na direcção de mudanças que são necessárias. O anarquista britânico contemporâneo Paddy Vipond descreve o voto como "a ferramenta mais fácil de usar no arsenal anarquista", uma forma de dar "um pequeno passo na direcção certa".
Mas o que significa, politicamente, dar um passo? A imagem do passo sugere um avanço rumo a um objectivo comum, embora com uma passada mais curta. No entanto, os anarquistas são praticamente unânimes em considerar que a anarquia é uma prática que emerge da auto-organização de base. Não pode ser imposta de cima para baixo. Os anarquistas dedicam uma energia imensa à criação de iniciativas locais e autónomas — livrarias, cafés, publicações, teatros, espaços artísticos, comunidades independentes — precisamente porque a anarquia surge da organização colectiva. Talvez, então, uma metáfora mais adequada para o acto de votar não seja a de um pequeno passo em direcção a um objectivo radical distante, mas sim a de uma postura defensiva: defender-nos das piores opções, votando nas menos más. Trata-se, assim, mais de um acto de autopreservação do que de um avanço conjunto num caminho partilhado.
Segundo esta perspectiva, votar em eleições estatais não representa um passo em direcção à anarquia, mas antes uma oportunidade para aquilo que o anarquista contemporâneo Ryan Conrad denomina de "redução de danos": queremos impedir que o pior aconteça. Esperar que esta estratégia conduza, mesmo que por um pequeno desvio, a uma sociedade anarquista é um absurdo.
Não é isso que votar em eleições governamentais permite fazer, precisamente pelas razões que os anarquistas apontam. Mas se virmos o voto como uma forma de minimizar os danos infligidos pelo Estado, então este torna-se mais semelhante a contratar um advogado para nos defender em tribunal, ou a casar por motivos de obtenção de nacionalidade.
Os anarquistas aceitaram regularmente (ainda que com reservas) ambas as estratégias: Goldman casou-se com o mineiro britânico James Colton para obter um passaporte britânico, e recorreu frequentemente aos serviços do seu amigo e advogado Harry Weinberger em inúmeros litígios judiciais. Os eleitores queixam-se muitas vezes de estarem cansados de escolher o mal menor, mas o que proponho é que, à luz da crítica anarquista ao sufrágio, escolher o mal menor é exactamente o que devemos fazer.
Reflectindo sobre as lições da sua vida, Goldman afirmou nas suas memórias que ninguém pode "permanecer na Terra sem fazer concessões". Levar a sério a perspectiva anarquista sobre o sufrágio implica, segundo creio, aceitar que nunca se alcançará uma sociedade justa pela via das urnas. Implica também aceitar que o envolvimento na política eleitoral acarreta riscos: o risco de legitimar o sistema, de comprometer a nossa própria identidade política e de negligenciar agendas mais radicais. Goldman e a maior parte dos seus camaradas consideravam que estas limitações eram inaceitáveis. Mas, cem anos depois, encontro mais sabedoria na conclusão de Goldman: a de que o compromisso é inevitável.
Em tempos graves, devemos combater as ameaças mais nefastas com todos os meios ao nosso alcance. Mesmo através do voto.
A redacção da Libertária, como é sabido, apela a que nestas eleições se vote à esquerda do PS (CDU, BE, LIVRE) para minimizar os danos que os partidos de direita irão causar caso obtenham uma maioria parlamentar, com leis anti-activismo que irão afectar todos aqueles que militam em movimentos sociais, ecologistas e libertários, até mesmo os que preferem ignorar as eleições. Até podem votar PS, não há um Comité Central do Anarquismo que vos proíba de votar!
Kathy E. Ferguson
Professora de Ciência Política e Estudos de Mulheres, Género e Sexualidade na Universidade do Havai em Manoa e autora de diversas obras, incluindo Emma Goldman: Political Thinking in the Streets. A sua publicação mais recente é Letterpress Revolution: The Politics of Anarchist Print Culture (Duke University Press, 2023).
Fonte: Fifth Estate nº 413, Primavera de 2023.