Tentamos, na medida do possível, adaptar a nossa tradução a um português mais próximo do da época, para lhe conceber o tom histórico que esta entrevista merece e também de modo a que os leitores percebessem que as ideias ali patentes estão na sua maioria datadas e até obsoletas, como constatarão no tom optimista com que Wells se refere ao New Deal de Franklin Delano Roosevelt, vendo neste a entrada dos Estados Unidos da América numa via para o socialismo em 1933.
Tal não é inédito nos autores socialistas da época, encontramos o mesmo optimismo na obra O Primeiro de Maio do socialista português Sebastião de Magalhães Lima (Edições Libertária, 2022).
Estavam Wells e Lima bem distantes da actualidade dos Estados Unidos pós-modernos, que com Donald Trump avançam a passo de marcha na via, isso sim, para um novo fascismo neo-liberal, autoritário e distópico, liderado por bilionários e por milionários envoltos num tecnofeudalismo impulsionado pelas redes sociais e pelo comércio online.
Nesta entrevista, Wells assume fervorosamente o papel de apaixonado reformista social-democrata, criticando a retórica da violência e a recusa da colaboração entre as classes por parte dos comunistas.
Pois bem, passados 91 anos verificamos que Wells, tal como Eduard Bernstein, estavam errados. A social-democracia e a Terceira Via não conseguiram qualquer conquista de relevo para as classes trabalhadoras, a Internacional Socialista e os vários partidos socialistas que a integram assimilaram no seu corpo doutrinário o capitalismo e o liberalismo como sendo a única via possível e a exploração das classes trabalhadoras como sendo o único mundo possível.
Chegados à segunda década do século XXI, a qualidade de vida dos trabalhadores sofreram um retrocesso gigantesco, voltamos todos a ser praticamente escravos, uns endividados aos bancos e os outros a terem de, como nos piores momentos da História da humanidade, viver em casas com uma família em cada quarto, pois nenhuma família consegue sequer alugar uma casa própria.
Neste volume temos duas visões contrastantes dos socialismos, a revolucionária (de Estaline) e a reformista (de Wells), ambas falharam, ambas sucumbiram aos ventos da História, uma foi derrotada e a outra tornou-se colaboracionista ou até parte da elite dominante e esclavagista.
Note-se que já em 1943 tanto Estaline como Wells julgavam que o sistema estava a colapsar, em queda. Lamento informar, mas tal era falso na altura e continua a ser falso agora: o sistema está a funcionar exactamente como era suposto, está no seu auge, o objectivo era mesmo este, um novo feudalismo onde os trabalhadores vivem aterrorizados com o medo da fome e o estatuto de sem-abrigo que o desemprego lhes trará.
Talvez compreendam por que razão um projecto editorial libertário optou por editar uma obra que dá voz a Estaline, que perseguiu e chacinou os libertários russos após, num primeiro momento, terem participado eles também na Revolução de Outubro.
Era necessário recordar este contraste, é necessário perceber que o comunismo foi derrotado e a social-democracia se tornou parte do sistema capitalista que nos oprime, o reformismo é impossível (veja-se como os respectivos partidos afastaram Jeremy Corbyn no Reino Unido e Bernie Sanders nos Estados Unidos), a única via que ainda não foi testada, a única via que ainda nos pode valer, é a do socialismo libertário!
Flávio Gonçalves
Fundador da revista Libertária, activista sindical, ex-autarca, editor e tradutor que se assume como livre de tribo, identidade, loja e seita.
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