Em Dezembro de 2024, alguns órgãos de comunicação social noticiaram o resgate de um homem ucraniano e do seu gatinho nas montanhas da Roménia, após terem cruzado a fronteira a partir da Ucrânia. No entanto, não mencionaram as razões da sua fuga. A Associação Anarquista da Checoslováquia (ČAS) entrou em contacto com ele para uma entrevista.
Esta é uma entrevista com um resistente à guerra que, em vez de combater, escapou da Ucrânia atravessando as montanhas da Roménia.
Para começar, gostaríamos de te desejar os nossos votos de boa saúde e esperamos que tanto tu como o teu gatinho estejam bem. Poderias apresentar-te aos nossos leitores?
Muito obrigado. O meu nome é Vladislav Duda e tenho 28 anos. Sou solicitador, mas rapidamente percebi que esta área foi concebida para facilitar o suborno, e não para proteger os direitos e liberdades humanas.
Sou de uma pequena aldeia perto da cidade de Bucha, na região de Kiev. Por razões desconhecidas, os meios de comunicação ucranianos têm afirmado que sou de Kharkov, mas tal não é verdade.
Entre 2022 e 2024, estive envolvido em jornalismo cidadão. Publiquei diversos materiais sobre violações dos direitos humanos no sistema judicial e nas forças de segurança do Estado ucraniano. Infelizmente, devido à censura, poucos desses materiais sobre violações de direitos humanos na esfera militar chegaram a ser publicados.
A tua corajosa fuga captou a atenção dos órgãos de comunicação social internacionais, mas a imprensa checa manteve-se em silêncio, pois a tua história não se encaixa na sua propaganda de guerra. Conta-nos como foi a tua travessia das montanhas até à Roménia.
Originalmente, o meu plano era atravessar as montanhas Maramureș em Maio de 2024. No entanto, no comboio para Rakhiv, em Zakarpátia, fui revistado pela patrulha fronteiriça, pelo que decidi saltar do comboio. Infelizmente, o comboio ainda seguia a uma velocidade bastante elevada e acabei por ferir-me na cabeça. Depois de levar pontos, permaneci dois meses num hotel em Rakhiv, onde fui tratado em regime ambulatório. No dia 28 de Julho, ao sair de um supermercado, fui atacado por um agente da esquadra de polícia local. Contra a minha vontade, levou-me para o centro de recrutamento militar em Rakhiv, onde fui mantido durante todo o dia dentro de uma jaula, sob a vigilância de homens armados, apesar de possuir documentos que confirmam que sou inapto para o serviço militar devido a sofrer de TDAH e TOC desde a infância. Mas, quando os meus amigos começaram a denunciar o meu tratamento, acabei por ser libertado. Mais tarde, um juiz ordenou ao procurador do Estado que desse início a um processo penal contra os agentes e indivíduos que me encarceraram ilegalmente. No entanto, o procurador militar arquivou o caso, justificando-se com declarações dos próprios perpetradores, que afirmaram que eu estava sob custódia voluntariamente. O procurador responsável pela investigação, Andrei Sokolov, declarou oficialmente que eu não possuía o estatuto de jornalista. Posteriormente, o juiz recusou reconhecer esta circunstância como suficiente para afastar o procurador da investigação.
Devido à segurança apertada no sector das montanhas que dá acesso à fronteira, fui obrigado a permanecer em Rakhiv até ao início do Inverno. Finalmente, a 28 de Novembro de 2024, quando restavam apenas algumas patrulhas fronteiriças nas montanhas, pude começar a travessia. Apesar do mau tempo, encontrei dois outros homens nas montanhas que tentavam também cruzar a fronteira. No dia 6 de Dezembro, depois de percorrermos mais de 40 quilómetros por trilhos montanhosos cobertos de neve (de 50 cm a 140 cm de profundidade), conseguimos atravessar a fronteira entre a Ucrânia e a Roménia. Infelizmente, durante a descida no lado romeno, encontrámos um declive com mais de 45 graus de inclinação e acabámos por cair ao rio. Fui resgatado por uma equipa de socorro romena.
Porque escolheste atravessar os Cárpatos para fugires para a Roménia? Pelo menos 16 pessoas já morreram nesse percurso. Quais são as opções para sair da Ucrânia e escapar à mobilização para o exército? Que conselho darias a outras pessoas que tentam fugir?
Na Ucrânia, a vida de uma pessoa que não é funcionária do aparelho estatal ou que não paga aos responsáveis pelo recrutamento militar não vale nada. A minha posição é simples – prefiro morrer pela minha liberdade do que pelos interesses de burocratas corruptos.
Não há muitas formas de escapar da Ucrânia. Normalmente, os homens atravessam a nado os rios Tisza ou Dniestre ou caminham durante várias semanas pelas montanhas até à Roménia. As fronteiras com a Hungria e a Eslováquia são rigidamente vigiadas, e a Polónia, em violação dos padrões da Convenção de Genebra sobre o Estatuto dos Refugiados, está a entregar os homens que captura aos Serviços de Segurança Ucranianos.
O meu conselho a quem quiser seguir os meus passos é: não tenham medo dos burocratas do Estado e deixem a Ucrânia à primeira oportunidade. É preferível ser visto como um cobarde pelos que apoiam as autoridades, mas continuar vivo, do que ser um herói de guerra e perder a vida ou a saúde enquanto as autoridades russas e ucranianas lucram com esta guerra.
Fugir com a ajuda de um passador pode custar mais de 4.000 euros, uma quantia que um trabalhador comum na Ucrânia não pode pagar, certo? Consideraste essa opção?
Fugir com a ajuda de um passador na Ucrânia custa entre 1 000 e 15 000 dólares. Mas não há qualquer garantia de que o passador não seja, na realidade, um agente infiltrado dos Serviços Secretos, que só te leva as últimas poupanças para depois te forçar ao serviço militar sem qualquer treino adequado, acabando por te enviar para morrer no primeiro combate contra o exército russo.
Conheço casos em que os Serviços Secretos organizaram esquemas oferecendo passagem segura até à fronteira mediante pagamento. Mais tarde, depois de receberem o dinheiro, levaram os homens directamente para uma armadilha montada pela Patrulha Fronteiriça Ucraniana. Esta, por sua vez, entregou-os ao centro de recrutamento militar, que, com relatórios médicos falsificados, declarou 99% dos homens aptos para o serviço militar, independentemente das suas limitações de saúde, e enviou-os para a guerra.
Tendo isso em conta, nunca considerei a opção de fugir com a ajuda de passadores. Em vez disso, elaborei o meu próprio plano de fuga da Ucrânia.
Vamos voltar ao tempo antes da tua fuga. Porque decidiste fugir da Ucrânia? Podes expor as razões pelas quais não querias combater?
Desde 2014, desde o Maidan, manifestei-me activamente contra as violações dos direitos humanos e das liberdades por parte das autoridades ucranianas. Na Ucrânia, todos aqueles que ousam levantar-se contra o governo são perseguidos. Os Serviços Secretos Ucranianos organizam vigilâncias e perseguições a quem se opõe aos abusos e métodos de tortura praticados pelos Serviços Secretos. Fui alvo de assédio por parte do Serviço de Segurança e dos seus lacaios durante dez anos. Inventam processos criminais, destroem reputações públicas e tentam quebrar a moral daqueles que resistem contra o regime criminoso.
Fartei-me de ser um alvo das estruturas de poder ucranianas, por isso decidi deixar o país. Gosto da minha pátria, mas desprezo este regime criminoso que está no poder. Tenho convicções pacifistas e anarquistas, pelo que considero inaceitável pegar em armas e participar em qualquer acção militar. Não quero morrer pelos interesses de funcionários estatais corruptos que, assim que a guerra acabar, fugirão do país com o dinheiro roubado ao povo.
És da região de Bucha, que foi amplamente mencionada nas notícias em relação aos crimes de guerra do exército russo. O que aconteceu lá? Como estão as pessoas a lidar com as consequências?
Não acompanho as notícias, mas ouvi falar do grande número de civis mortos por soldados de Ramzan Kadyrov. Pelo que sei, os soldados russos não participaram nos fuzilamentos em massa da população. Tal foi responsabilidade dos membros das Forças Especiais chechenas. Mas posso estar errado.
Em Bucha, a maioria das pessoas ainda comunica em russo, embora algumas insistam em utilizar o ucraniano. Em Kharkov, 99% da população fala apenas russo e, em Kiev, todos os funcionários públicos, incluindo aqueles que trabalham no gabinete do presidente Volodymyr Zelensky, comunicam em russo. O ucraniano é utilizado só em eventos oficiais, pelo que a onda de ódio contra a língua russa, amplificada pela comunicação social, me parece peculiar.
O ucraniano é falado só nas regiões ocidentais, porque é a língua materna dos habitantes dessas zonas. No Leste e em Kiev, a maior parte das pessoas utiliza o russo.
Qual é o estado de espírito da população e qual é a sua relação com o exército? A deserção, as fugas e a evasão ao recrutamento estão a aumentar. Quais são as razões? Porque é que as pessoas não querem combater?
Na maioria dos casos, as pessoas apoiam a guerra e a mobilização, desde que isso não as afecte directamente ou aos seus entes mais próximos. Os verdadeiros patriotas já estão a combater ou foram mortos. Em geral, a atitude em relação ao exército é positiva, mas há um ódio generalizado contra o pessoal militar que força as pessoas a irem para a guerra.
A maior parte dos fugitivos e desertores, em ambos os lados do conflito, não quer morrer pelos interesses das autoridades corruptas. Os filhos dos dirigentes não participam nas operações militares, embora a maioria deles figure formalmente nas listas do exército ou tenha uma participação apenas "no papel". Na realidade, para eles as fronteiras estão abertas e estão a gastar no estrangeiro o dinheiro roubado ao orçamento estatal.
A guerra contra a corrupção na Ucrânia não passa de um espectáculo para a comunidade internacional. Na prática, a maior parte dos funcionários corruptos continua livre e impune. As pessoas não querem combater sob estas instituições.
Achas que há esperança para o fim dos combates e para uma solução pacífica? Que cenário consideras realista?
Enquanto ambos os Estados beligerantes não tiverem desviado todo o dinheiro possível do orçamento dos contribuintes e não tiverem extraído o máximo de lucro material da guerra, os combates não acabarão. No dia em que ambos os lados esgotarem os seus recursos materiais, a guerra terminará. Não te esqueças de que todas as guerras acabam na mesa de negociações.
O que pensam a tua família e amigos sobre a tua fuga?
Não tenho amigos na Ucrânia devido à perseguição por parte dos serviços de segurança ucranianos. Transformam em párias aqueles que lutam pela justiça e pelos direitos humanos, espalhando calúnias sobre eles e pressionando as pessoas a cortarem qualquer contacto.
A minha mãe apoia a minha decisão. Mas não mantenho contacto com outros membros da minha família devido às suas ligações aos serviços de segurança. Além disso, o meu pai, Andrij Duda, quase conseguiu que eu fosse preso com base numa acusação fictícia, uma vez que entre os seus parentes há membros dos serviços secretos.
Como é a tua vida enquanto emigrante? Tens medo dos serviços secretos ucranianos? Quais são os teus planos para o futuro?
Aqui, onde estou actualmente, sinto-me seguro. Não tenho medo dos serviços secretos, pois já estive muitas vezes à beira da vida e da morte, e essas situações fortaleceram a minha determinação. Não escondo a minha situação, os meus dados pessoais ou a minha aparência. É possível que os serviços secretos ucranianos tentem matar-me ou forçar o meu regresso à Ucrânia, porque já recebi ameaças de pessoas ligadas a estes. No entanto, isso não pode, de forma alguma, afectar a minha visão do mundo ou fazer-me desistir das minhas crenças.
Quanto aos meus planos para o futuro, o melhor é mantê-los em segredo, caso contrário é muito provável que a sua concretização seja frustrada. Mas não me importaria de escalar o Monte Evereste.
O que dirias a todas as pessoas na Ucrânia e na Rússia, se houvesse esperança de que todos te lessem?
Gostaria que percebessem que é inútil dar a vida ou tirar a vida de outra pessoa por ordem das autoridades que lucram com a guerra. Não há vencedores nem vencidos na guerra – todos os conflitos armados terminam em negociação. Milhões de vidas são destruídas pela ânsia das potências mundiais para obterem um papel político mais dominante. Essas vidas nunca serão devidamente valorizadas. Há um provérbio que diz: "Um cão vivo vale mais do que um leão morto."
Obrigado pela entrevista e desejamos-te tudo de bom.
Obrigado por abordarem um tema tão sensível e por apoiarem a liberdade de opinião sem censura.
Fonte: Anarchist Communist Group