Como alguém que passou por várias situações de sem-abrigo, a habitação é um tema que considero de extrema importância. A abordagem típica para ajudar pessoas a conseguir e manter uma casa gira em torno de abrigos para sem-abrigo, alojamentos de transição, programas de assistência social, habitação pública, senhorios, empréstimos bancários predatórios, hipotecas, despejos e escassez artificial. Então, como podemos afastar-nos disto rumo a algo que satisfaça melhor as nossas necessidades enquanto sociedade composta por pessoas que precisam todas de um tecto?
Podemos começar por abolir — ou pelo menos flexibilizar substancialmente — as leis de ordenamento do território e os regulamentos de construção. Isto poderá parecer contra-intuitivo para alguns, visto que os regulamentos de construção ajudam a garantir que os edifícios em que vivemos são seguros, e as leis de ordenamento afastam as nossas casas de aterros, fábricas poluentes, negócios barulhentos e outros locais desagradáveis. Mas para além de terem origens racistas, estas leis limitam severamente a oferta de habitação. Os regulamentos de construção, por exemplo, podem incluir normas ambientais excessivas que, embora bem-intencionadas, impõem custos adicionais aos senhorios — alguns dos quais não os conseguem suportar, mantendo assim essas propriedades fora do mercado, o que contribui para a escandalosa realidade de vinte e oito casas vazias por cada pessoa sem-abrigo. As leis de ordenamento não só agravam imenso a expansão urbana descontrolada e impedem-nos de construir cidades onde seja possível andar a pé, como também proíbem frequentemente habitações multifamiliares e limitam as oportunidades económicas de quem trabalha a partir de casa.
Claro que continuamos a precisar de garantir que os edifícios e as comunidades em que vivemos são seguras — mas como o devemos fazer? A segurança dos edifícios pode ser inspeccionada e certificada por diversos grupos independentes de defesa dos consumidores. Onde vivo, existe uma associação chamada Coligação Comunitária para a Eficiência Energética Doméstica, gerida por voluntários, que oferece vistorias gratuitas a qualquer tipo de habitação para verificar se esta é ambientalmente eficiente, recomendando alterações que a tornem ainda mais sustentável. Os inquilinos, senhorios e proprietários são incentivados a recorrer a estes serviços, pois permitem reduzir activamente as facturas da luz ao melhorar a eficiência energética dos edifícios. Permitir que os senhorios sejam processados por danos e/ou despesas médicas quando o estado dos seus imóveis causa problemas ajudaria também a reduzir significativamente as condições de habitação perigosas, ao mesmo tempo que os incentivaria a procurar avaliações e certificações junto de grupos de defesa dos consumidores para se protegerem legalmente. Os arrendatários tenderão a preferir casas certificadas como seguras — se as conseguirem pagar — e, para os que não conseguirem, os sindicatos de inquilinos são uma ferramenta poderosa para garantir condições de habitação seguras e ambientalmente sustentáveis. Até mesmo os corpos de bombeiros voluntários poderiam oferecer inspecções de segurança contra incêndios e emitir certificações, mesmo sem obrigatoriedade legal. Um proprietário que não se der ao trabalho de certificar a sua casa segundo o código de incêndio terá muito mais dificuldade em arrendá-la ou vendê-la. E quem estiver disposto a arriscar viver numa casa não certificada fá-lo por escolha — e mesmo quando essa escolha for economicamente forçada, poderá ainda assim preferi-la a viver na rua. Para aliviar esse tipo de coacção económica, temos de aumentar a oferta de habitação a preços acessíveis.
No que respeita ao ordenamento, os poucos benefícios que dele advêm podem ser reproduzidos de outras formas. Boicotes e protestos comunitários podem afastar negócios indesejados da vizinhança, os sindicatos de inquilinos podem impedir que negócios ruidosos ou perturbadores se instalem em complexos residenciais, e advogados ambientalistas e grupos activistas podem responsabilizar as empresas poluentes e manter as nossas comunidades limpas. Na verdade, já hoje confiamos em activistas e advogados para nos proteger da poluição — dado que os ricos conseguem influenciar os políticos a redigir leis de ordenamento do território em seu favor, protegendo apenas os bairros abastados e sacrificando os bairros pobres em prol do lucro. Revogar essas leis permitiria às pessoas abrir negócios em casa, ter mais liberdade para coabitar com outros e ajudar a criar cidades onde se possa viver a pé. Trabalhar a partir de casa reduz os custos evidentes de alugar um espaço comercial. A combinação com cidades mais caminháveis permite poupar imenso em transportes. Permitir que mais pessoas vivam numa mesma casa facilita a partilha da renda mensal. Todos estes benefícios convergem num resultado extraordinário: a habitação torna-se mais acessível.
Como mais podemos aumentar a oferta? Abolindo as leis de controlo de rendas e os impostos sobre a propriedade. Num raro exemplo de consenso, economistas de praticamente todas as correntes concordam que as leis de controlo de rendas reduzem tanto a quantidade como a qualidade dos imóveis para arrendamento, ao desincentivarem os novos investimentos no mercado habitacional por parte de promotores e senhorios, ao mesmo tempo que incentivam os senhorios a retirar os seus imóveis do mercado de arrendamento controlado e a colocá-los no mercado de venda não regulado. E embora a propriedade seja bastante preferível à figura do senhorio, num mercado artificialmente escasso como o nosso, onde muitos não podem comprar casa, precisamos que existam mais imóveis para arrendamento disponíveis. Se quisermos aumentar a proporção de pessoas com casa própria, abolir os impostos sobre a propriedade tornaria esse objectivo mais acessível, reduzindo o custo da aquisição e estabelecendo uma verdadeira propriedade, sem o risco de o Estado a confiscar por falta de pagamento de impostos. Tal também reduziria os custos de investimento para senhorios e promotores, aumentando assim a oferta de habitações para arrendamento.
Tudo bem, aumentar a oferta de habitação é necessário — mas e a acessibilidade económica? Felizmente, as opções não teriam de se limitar a habitações inseguras ou condenadas, uma vez que estas mudanças facilitariam e tornariam mais barato para igrejas, organizações sem fins lucrativos, activistas e empreendedores criar habitação acessível. Seja construindo casas económicas em terrenos pertencentes a igrejas, convertendo antigos centros comerciais em apartamentos ou criando fundos comunitários de terras, não faltam opções.
Estas opções são também muito mais desejáveis do que a habitação pública. Seja sob a forma de projectos habitacionais estatais ou de habitação subsidiada pelo HUD, o que se tem oferecido são habitações de fraca qualidade, fortemente estigmatizadas e criticadas mesmo por quem nelas habita. Poderíamos proporcionar alojamento muito melhor e a um custo mais baixo para os contribuintes se adoptássemos políticas de Primeiro a Habitação e nos aliássemos às próprias igrejas, associações sem fins lucrativos, activistas e empreendedores para alojar quem precisa. Mesmo que este método fosse parcialmente subsidiado pelo Estado, continuaria a ser mais económico para os cofres públicos, pois reduziria substancialmente a dependência de serviços financiados por impostos, como abrigos de emergência, prisões e hospitais. Segundo a Aliança Nacional para Acabar com a Situação de Sem-Abrigo, os programas de Primeiro a Habitação poderiam poupar aos contribuintes entre 15.773 e 23.000 dólares por ano por cada pessoa assistida. Com o fim das restrições de ordenamento territorial, muitas igrejas e outras entidades estariam aliás dispostas a utilizar os seus espaços como abrigos de emergência fora do horário das suas actividades principais, reduzindo ainda mais a necessidade de abrigos financiados pelo Estado.
Para além disso, recursos privados como o Sean’s Outpost são exemplo do tipo de soluções inovadoras que podem servir de modelo para o futuro dos serviços de apoio aos sem-abrigo. Não só distribuem refeições, roupa e cobertores, como também criaram o Centro Bitcoin de Apoio às Pessoas Sem-Abrigo, a loja solidária Outpost Thrift, e a Satoshi Forest — um parque de campismo privado e gratuito para sem-abrigo, como alternativa aos acampamentos ilegais, com uma quinta biológica onde se aprende a cultivar alimentos para a comunidade e uma oficina para criadores onde se ensinam e aprendem ofícios que podem levar a empregos decentes ou a fontes de rendimento próprias, recorrendo ao apoio mútuo como forma de recuperar o acesso a uma habitação. Criaram até as BitHouses — caravanas habitáveis por até duas pessoas, vendidas segundo um modelo em que por cada uma vendida, outra era doada a uma pessoa sem-abrigo — e colaboraram com o grupo Bitcoin Not Bombs para ensinar pessoas sem acesso a bancos a utilizar criptomoedas como recurso alternativo.
Mas até agora só abordámos como aumentar a oferta de habitação acessível para arrendamento e ajudar quem fica de fora do sistema. Como é que se faz então a transição para longe dos senhorios e se aumenta a propriedade da casa em vez do arrendamento? Bem, além de apoiar direitos sólidos de ocupação e de uso da terra em propriedades abandonadas ou sem dono (quintas), podemos lutar pela implementação de um imposto sobre o valor da terra (IVT). Ao contrário do imposto predial, que incide sobre o valor tanto da terra como das construções nela erguidas, o IVT incidiria apenas sobre o valor da terra em si. A ideia por trás deste imposto é que a terra, ao contrário de muitas outras formas de propriedade, é um recurso natural que não foi criado por seres humanos e, portanto, deve ser partilhado de igual modo por todos. Se alguém quiser reclamar o uso exclusivo de um recurso comum, então deverá compensar a comunidade por isso. Este modelo transforma a propriedade fundiária de uma situação de escassez artificial dominada por senhorios para uma de propriedade comum. Na versão ideal deste sistema, a residência principal de uma pessoa (e eventualmente o seu negócio doméstico) não seria tributada, enquanto que quaisquer segundas habitações ou propriedades comerciais estariam sujeitas ao imposto sobre o valor da terra — que seria redistribuído na forma de um Rendimento Básico Universal, tornando a propriedade da habitação muito mais acessível para a pessoa comum. Até os mais pobres entre nós poderiam ocupar propriedades abandonadas em terrenos comuns e ir recuperando-as aos poucos com o seu rendimento básico, com ou sem ajuda solidária, acabando por conquistar uma casa não tributada ao abrigo das leis de usucapião. E como o IVT só tributa o valor da terra e não as melhorias feitas sobre ela, o imposto não aumenta quando são realizados melhoramentos na propriedade, ao contrário do que acontece com o imposto predial. Isto incentiva ainda mais o investimento e o desenvolvimento, contribuindo assim para o aumento da oferta de habitação acessível, quer para arrendamento quer para venda.
Para os que enfrentam despejos, sob este ou outro sistema, continuamos a ter os sindicatos de inquilinos e as tácticas inspiradas no movimento Occupy, como as do grupo Casas em Vez de Prisões, que bloqueiam fisicamente senhorios e polícias de entregarem notificações de despejo ou de executarem os despejos, ajudando ainda a realojar as pessoas depois de terem sido expulsas, ao mesmo tempo que protegem quem ocupa.
Pode existir um sistema habitacional justo. O movimento YIMBY (“No Meu Bairro, Sim”) luta pela desregulamentação do ordenamento do território; o movimento relacionado YIGBY (“No Quintal de Deus, Sim”) luta pela revogação de regulamentos que impedem as igrejas de funcionarem como abrigos ou de oferecerem habitação acessível em propriedades religiosas; o grupo Casas em Vez de Prisões e outros sindicatos de ocupação lutam pelos direitos de quem ocupa; os sindicatos de inquilinos lutam por habitação mais segura e acessível; as políticas de Primeiro a Habitação já existem em locais como o Utah, Boston e Seattle, com resultados promissores; o Sindicato Internacional para o Imposto sobre o Valor da Terra faz o possível por implementar o IVT; e vários eleitores têm vindo a organizar campanhas contra impostos prediais, códigos de construção, controlo de rendas e muito mais.
Conseguimos fazê-lo — só temos de compreender esta questão de forma holística e combatê-la por todos os ângulos possíveis, percebendo como cada peça se encaixa no todo.
Logan Marie Glitterbomb
Anarquista, católica, pessoa com deficiência e mulher trans, a Logan Marie descobriu o anarquismo graças à cena punk do seu liceu e acabou por se juntar ao sindicato Industrial Workers of the World onde é actualmente uma das organizadoras do Sindicato dos Jornalistas Freelancer, é co-fundadora do Concelho Socialista Libertário do Partido Libertário dos EUA e do Concelho Socialista Libertário dos Sociais-Democratas da América. Sigam-na no Twitter: @MakhnoTits
Publicado originalmente no Center for a Stateless Society.